Sinopse: MEDO
FELICIDADE CLANDESTINA
MEDO
Sandra era meio gordinha, tinha uma cor de burro fugido, cabelos curtíssimos bem sarara, cor queimado de sol. Tinha busto mediano compatível com o formato do corpo, o que mais chamava a atenção era aquele vestido meio rodado com detalhes em chita e rosa nada na moda, parecia ter um só. Nós éramos magras, cabelos compridos, anelados e lisos, mas daquele jeito, só de Sandra. Como se não bastasse ela sempre tinha balas e o pior: o que mais torturava; biscoitos recheados. Tudo que não podia ter. Ela tinha todos os dias. Tudo que uma criança sem dinheiro e com pais pobres queria; aqueles biscoitos que pareciam tão saborosos, enquanto podia apenas acompanhar com os olhos e vê-los pouco a pouco sumir contentando apenas com os farelos que caiam. Que tortura.
A mãe dela era ausente e por isso dava dinheiro para o lanche da escola todo dia, era tudo que queria pelo menos um biscoito inteiro para comer com recheio e tudo, mas tudo que sobrava eram os farelos, a promessa de talvez ganhar um no dia seguinte e tinha mais, ela sempre mostrava o dinheiro para comprar outro a hora que quisesse, em vez de comprar um a mais para as colegas.
Sempre me oferecia para ensina-la matemática em troca de biscoitos. Ela era uma criança que adorava torturar pela comida, coisas que não podia comer quando quisesse, pois, meus pais não tinham dinheiro para dar.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, comia os biscoitos lambia o recheio com ar de quem desfrutava um banquete. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres.
Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo, mas não deixei para lá. Na minha ânsia de comer os biscoitos, eu roubei o dinheiro dela, não foi legal, mas minha casa precisava mais do que ela. Eu fingia não ser humilhada, mas a
Atitude foi por outro motivo, ao mesmo tempo que queria os biscoitos precisava comprar comida para casa. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa.
Começou uma busca pelo dinheiro desaparecido, eu era a principal suspeita, apesar de ninguém ter visto o que eu fiz, disse a minha mãe que tinha achado.
Foram vários dias as mesmas perguntas e acusações contra mim até que a convenci de tê-lo perdido no recreio quando jogávamos bola. Como casualmente, a professora veio me interrogar se eu por acaso teria pego o dinheiro. Me senti nas histórias de monteiro lobato quando a Narizinho aprontava das suas.
Era um fardo pesado a carregar, meu Deus, era um momento para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que chamaria a polícia. Os dias passavam, mas ela não esquecia.
Até o dia seguinte foram falar com minha mãe, a mãe de Sandra eu me transformei no medo em pessoa sem esperança e talvez eu teria que confessar: eu não vivia, nadava devagar num mar agitado, as ondas me levava e me prendiam, sem solução ou uma saída.
No dia seguinte fui à sua casa de Sandra, literalmente correndo. Ela morava num sobrado e eu sim numa casa humilde. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia encontrado o dinheiro, e sua mãe me mandou voltar para casa tranquila. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Jequitai. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa de não mais fazer o que havia feito: roubar. A atitude da mãe de Sandra salvou minha vida inteira, ela sabia que eu tinha pego o dinheiro. O amor dela por mim me deixou mais leve sem remorso, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto de Sandra continuava: comprar biscoitos e mostrar que tinha dinheiro e agora mais do que antes. No dia seguinte lá estava eu olhando de longe querendo um único biscoitinho. Fiquei na vontade: Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, poderia comprar quantos biscoitos recheados eu quisesse.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Foram vários até enjoar, enquanto o fel não escorresse todo o seu corpo gordo. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu fiquei diariamente espiando, com agua na boca sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: que não me dá. E eu, que não era dada a pedir, pedia assim mesmo com vergonha.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas estes biscoitos são para você e suas colegas!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina cor branca em pé à porta, exausta, ao calor das ruas de Jequitai. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai comprar biscoitos para sua colega agora mesmo. E para mim: “E você como o quanto quiser. ” Entendem? Valia mais do que tudo para mim “o quanto quiser” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi os biscoitos na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei-os. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava um manjar, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a comer. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri o pacote, comi alguns deliciosos, fechei-o de novo, fui passear pela casa, andei ainda mais indo comer mais alguns, fingi que não sabia onde guardara os biscoitos, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar com medo pelo roubo. Havia medo e pudor em mim. Eu era uma ladra indelicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com os biscoitos no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina ladra: era uma mulher que sabia pedir ao invés de roubar.
(LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1998)
Autor(a): ribeirom588