Sinopse: FELICIDADE REPENTINA
Hermione Granger era magra, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente cacheados e arruivados. Não tinha um busto enorme, entre suas amigas todas eram achatadas. Talvez como forma de chamar atenção, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Mesmo assim, não era de aproveita-la para presentear seus amigos em datas comemorativas. Nessas oportunidades, ao invés de nos presentear com ao menos um livrinho daqueles mais baratinhos, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Não bastasse isso, esses cartões continham paisagens de Hogwarts mesmo, sendo onde morávamos, com seus campos mais do que vistos. Atrás escrevia com letra belíssima palavras como “Felicitações” e “Saúde e Paz”.
Inigualável era seu talento para a maldade. Conhecia todas as artimanhas do mundo da magia. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos diferenciadas para nossa idade, moças belas, de incomparável altivez, sempre alinhadas e de cabelos ao vento. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na ânsia pelo saber, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: vivia a implorar lhe emprestados os livros que ela já havia lido.
Em um belo dia, resolveu superar seus dotes de tortura. Me disse que estava lendo As Relíquias da Morte, de J.K. Rowling. Que livro! Parecia um manual de tão grosso, meu Deus, e que páginas perfumadas, cheiro de livro novo, dava vontade de morar dentro dele e nunca mais sair dali! Porém, este sonho estava longe de minhas possibilidades. Sabendo disso, me disse para ir a sua casa no dia seguinte que ela o emprestaria.
A partir daquele instante meu mundo parou, não tive paz! E o único motivo de me manter viva era a ínfima esperança de que aquele sonho pudesse se tornar realidade.
Ah que noite sem fim! Parecia que o tempo havia parado. Enfim o grande dia havia chegado, sai levitando pelas ruas da cidade em direção a bela Mansão em que vivia. Eu que morava no subúrbio não era acostumada a ver tamanha construção. Chegando enfim ao belo recinto, aguardei ansiosamente. Quando então ela apareceu e me olhando nos olhos, disse me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Ainda estarrecida, saí dali quase que sem chão, contudo novamente ressurgiu a esperança dentro de mim, era guiada pela fé de que o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, comecei a saltitar e cantar pelo caminho até meu lar.
O novo dia raio e aguardei o horário oportuno para buscar meu tão sonhado tesouro. Quem dera fosse tão simples assim... chegando lá a encontrei com um sorriso no rosto e a resposta dada com extrema calma de que o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Desse modo Hermione, sustentava seu plano secreto de maneira tranquila e diabólica.
Mal sabia eu como mais tarde que esse drama se repetiria, por incontáveis dias. Ela sabia que seu plano tinha data indefinida para se findar, enquanto o veneno não escorresse todo de seus lábios. Eu já pressentia que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, mesmo adivinhando, às vezes era de comum acordo: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando muito que eu sofra.
Quanto angustia? Diariamente ia à sua casa, sem pular um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, de tanto que sofria começa a apresentar os primeiros sinais de olheiras em função de noites mal dormidas a esperar que aquela angustia tivesse fim.
Em um belo dia, quando eu estava parada na porta ouvindo humildemente sua nova desculpa de ainda não ter o livro, eis que me aparece sua mãe. Provavelmente em busca de explicação do real motivo de me ver todos os dias, muda, em sua porta sem nada fazer. Hermione tentou explicar-se, mas se perdia em suas próprias palavras, como se o veneno contido em suas presas a fizesse engasgar. Sua mãe por fim compreendeu e num repentino susto disse a filha: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
Por alguns instantes ela se calou, nos observou, pensou. Talvez sua estranheza devia estar no fato de não saber qual quão cruel sua filha se revelava. De um lado uma jovem perversa que até então era desconhecida, e do outro uma louca desvairada que atravessava os belos vales de Hogwarts, dia após dia atrás de um livro que não lhe pertencia. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser”.
Por um instante, pensei que fosse desmaiar. Percebem? Nada melhor poderia dizer do que: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, como eu poderia ter a ousadia de querer.
E o que aconteceu depois? Eu estava embasbacada, e assim Hermione me entregou o livro na mão. Acho que naquele instante o tempo parou novamente e não consegui dizer nada. Peguei o livro e sai. Não pulando como de costume. Saí andando bem devagar. Segurei o livro pesado e grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito, tamanho o medo de que algo lhe acontecesse. Não sei dizer quanto tempo levei até chegar em casa, mas também pouco importa. O que realmente importa era que meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Queria que o tempo não passasse e aqueles dias não acabassem. Não queria devorar aquelas páginas em poucos instantes. Preferi faze-lo vagarosamente. Lia uma página, saia, fingia para mim mesma que não o tinha em meu poder. Vagava pela casa, tomava café, de repente voltava, lia mais uma página. E então novamente me fazia de distraída e saia. Como se nada tivesse acontecido voltava, abria-o novamente e me deliciava em suas páginas. Eu queria que de alguma forma aquela felicidade repentina que em meu peito ardia durasse o tempo suficiente para que fosse eternizada em minha alma. Me parecia que a felicidade era algo inatingível, eu queria que aqueles instantes durassem para sempre, na esperança de que fosse chegado o dia em que eu não precisasse nada temer e que meu sonho de morar num livro pudesse acontecer.
Como demorei aquela leitura! Eu vivia nas nuvens. Havia orgulho e pudor em mim. Me sentia a rainha da delicadeza.
Houveram tardes em que me sentava na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, apenas admirando-o e sentindo um êxtase puríssimo.
Para quem via, não era mais uma menina com um livro: parecia agora uma mulher nos braços de seu amante.
Autor(a): filipe_moreira