Sinopse: “FELICIDADE CLANDESTINA E SEU FINAL TRÁGICO. Reescrita
“FELICIDADE CLANDESTINA E SEU FINAL TRÁGICO.
Reescrita
Ela era magra, alta, morena e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto até pequeno, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, fazia dieta, por cima do busto, havia um prato de salada. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de doces gostaria de ter: um pai dono de doceria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um bolo barato, ela nos entregava em mãos um algum bombom sem graça do pai. Ainda por cima era de amendoim mesmo, onde morávamos. Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, só por que ela resistia a guloseimas com facilidade. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas por somos brancas, esguias, gordinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ser magra, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe doces de graças na escola já que eu não comia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura Era uma receita de Detox , meu Deus, era um receita de chá e sucos naturais para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o E Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim num palácio. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o a recita de chás e sucos a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Triste, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas do Tocantins. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa da receita, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da doceria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um
sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: a receita ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o recita de sucos e chá esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu seu pai. Ele devia ter estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. O senhor achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que esse pai bom entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas esta receita de sucos e guloseimas nunca saiu daqui de casa e você nem quis aprender a fazer, E o pior para esse homem não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas do Tocantins. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o a receita agora mesmo. E para mim: "E você fica com a receita por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar a receita: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi a recita de guloseimas e sucos na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei a receita . Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava recita de guloseimas com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. Chegando em casa, não comecei fazer. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara a receitas de chá, sucos e guloseimas , achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha
delicada. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com ela aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com a receita: era uma mulher que estava triste e solitária por fazer o mal.
Autor: Miguel Passos apud Clarice Lispector
Autor(a): miguel12