Sinopse: Felicidade Clandestina
Macarena era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos uma caneta. Ainda por cima era uma caneta com propaganda de editoras que trabalhavam com a loja do pai.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que um dia ela decidiu exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía o livro Crepúsculo, de Stephenie Meyer.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Trombei em um menino, pedi desculpas e segui correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa mansão. Não me convidou para entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte sai a caminho da casa dela, andando rápido, quase correndo. Dessa vez caí, um menino me ajudou a levantar. Quando vi, era o mesmo menino que havia trombado no dia anterior. Ele me perguntou se eu só andava desse jeito, trombando nos outros e caindo na rua. Eu ri e disse que não, que estava assim por um motivo especial, expliquei-lhe a situação, ele sorriu e disse que era um bom motivo para estar assim, se apresentou, seu nome era Cleiton Kent. Ele era alto, forte, cabelos loiros, e tinha um sorriso lindo. Perguntou se poderia me acompanhar, disse que sim. Seguimos o caminho conversando, ele estudava na mesma escola que eu, porém era um ano mais velho. Chegamos à porta da casa dela, eu com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Olhei para Cleiton e vi uma expressão desconfiada em seu rosto, porém não falou nada. Fomos embora. Cleiton me perguntou se eu acreditava na história de que o livro estava emprestado para outra pessoa, disse que não muito, porém, queria acreditar que era verdade e que ela me emprestaria o livro. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Fui mais três vezes à casa dela, até que no terceiro dia, encontrei com Cleiton novamente que percebeu que eu ainda estava sofrendo nas mãos dela e me acompanhou novamente. Dessa vez ela disse: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Cleiton começou a ficar com raiva, sabia que ela estava fazendo isso comigo só pelo prazer de me ver sofrer. Sua indignação e raiva o fizeram nos mostrar um lado dele que ninguém conhecia. Descobrimos aquele dia que Cleiton era uma pessoa especial, na verdade, uma pessoa que possuía poderes especiais. Ele, tomado pela fúria, decidiu usar sua visão de raio-X para encontrar o livro dentro da casa. Encontrou. Estava parado na estante de livros na biblioteca.
Fiquei furiosa, não acreditava que havia caído no jogo de tortura dela. Xinguei ela de todas as formas, comecei a gritar, tentando obriga-la a me entregar o livro. Ela ria e dizia que ninguém a obrigaria a fazer isso. Até que ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós três. Houve uma confusão silenciosa por um breve momento, até que Cleiton decidiu contar tudo. A mãe voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.”
Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Porém uma coisa ainda me intrigava, o que tinha acontecido com Cleiton aquela hora? De onde surgiu aquele super poder? Ele me contou que seu pai era Clark Kent, mais conhecido como Superman. Fiquei boquiaberta, não conseguia acreditar que eu conhecia o filho de um super herói famoso. Conversamos um pouco mais sobre isso, até que ele me fez jurar guardar o segredo dele, perguntei o que ele faria a respeito de Macarena que tinha visto também. Ele disse que não era pra eu me preocupar, que ele daria um jeito nisso. Concordei e preferi não ficar pensando nisso, até porque estava extasiada com o livro que havia acabado de pegar emprestado.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas interessantes, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei!
Decidi sentar na rede para ler o livro, o início era muito interessante, até que começou a aparecer personagens estranhos, com um enredo tolo e a personagem principal se mostrando cada vez mais alienada e insossa.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher completamente irritada e decepcionada com essa história horrível.
Autor(a): sophiaa_carvalho