Fanfics Brasil - Sinopse de

Sinopse: O prazer da felicidade clandestina



O Prazer na Felicidade Clandestina
Adelciane Nunes Rocha
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos,
meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos
achatadas. Como se não bastasse, ainda tinha um avô que amava a neta, o lindo
velhinho possuía uma vendinha na saída da escola com variedade de doces,
todos os dias colocava aquela menina tão perversa no colo e tratava com gestos
de carinho, ao se despedi dava um saquinho de balas coloridas que já deixava
pronto e dizia: divide com suas coleguinhas e coma somente depois do almoço,
a menina antes de sair enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com
aquelas balas. O bom velhinho ficava de longe observando e a neta jamais
compartilhava aquelas balas com as outras meninas, porém ele repetia o gesto
e a mesma fala todos os dias, pois acreditava que era coisa de criança e que
passaria com tempo. A menina possuía o que qualquer criança devoradora de
histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de
pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da
loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos,
com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima
palavras como "data natalícia" e "saudade".
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança,
chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que
éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres.
Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler,
eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-
lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma
tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de
Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com
ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-
me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte, parecia uma eternidade, mal preguei o olho de tanta
ansiedade, não via a hora de ter em minhas mão aquele fantástico livro, para
poder devora-lo dia e noite, eu me transformei na própria esperança da alegria:
eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. Minha mãe acompanhava minha inquietação durante a madrugada,
quando me deitava abria levemente a porta do quarto e apagava a luz, deduzindo
que havia adormecido, repetiu por várias vezes até o amanhecer
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava
num sobrado como eu, e sim numa casa com uma grande vizinhança. Não me
mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado
o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo.
Boquiaberta, saí devagar, observei uma senhora alta, rosto sereno, cabelos
grisalhos, ficou a olhar o que a menina havia feito, acenou com a mão, estava
tão decepcionada que não quis compreender o que a senhora desejava falar,
retribuir o gesto balançando a cabeça e seguir em direção minha casa, mas em
breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar
pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa
vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias
seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me
esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Durante o percurso, avistei uma senhora sentada no banco de um jardim, na
praça, lendo pra uma menininha, aparentemente tinha cinco anos, a mulher não
sei dizer se era a mãe ou a baba, mas isso não importa, o que me chamou
atenção foi a forma que aquela mulher estava lendo aquele livro com tanto
entusiasmo e verdade, parecia que estava vivendo dentro daquela história, a
menina por sua vez, estava com os olhos fixos, ouvidos atentos, não se mexia.
Nem perceberam a minha presença, ouvi uma boa parte da história e logo meus
pensamentos voltaram para o dia seguinte, não via a hora de apreciar aquela
leitura que já fazia parte de minha história.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de
livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa,
com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda
não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como
mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir
com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo
indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já
começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho.
Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer
esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer.
Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio
de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a
olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. A vizinha,
que havia acenado num dia desses, passou observar com frequência a atitude
da menina e resolveu seguir-me disfarçadamente até minha casa, estava tão
triste, com os pensamentos longe, só pensava no dia seguinte para talvez poder
mergulhar naquela tão sonhada leitura escrita por Monteiro Lobato. Entrei em
casa de cabeça baixa, minha mãe estava a dias preocupada ao perceber que
acontecia algo comigo, sempre perguntava se estava tudo bem e respondia que
sim, que iria para meu quarto, mas ela achava que era coisa da idade e esperava
o momento certo para averiguar. Em seguida, ouvir leves toques na porta, e
vozes a sussurrar na sala durantes horas, não consegui ouvir, nem me
interessava, pois meus pensamentos estavam voltados pra o tão esperado
momento que teria finalmente aquele livro para devora-lo com todo aquele
desejo que me consumia nos últimos dias.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde
e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a
aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa, pensei comigo.
Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de
palavras pouco elucidativas. Na verdade, aquela mãe ali em pé olhando pra nós
duas, só queria ouvir uma nova versão dos fatos, pois, já sabia de tudo, pois a
vizinha que acompanhava o descaso daquela menina todos os dias ao lado de
sua casa, havia contado pra minha mãe que por sua vez, foi ter uma conversa
de mãe pra mãe. Então aquela mulher diferente da filha era uma alma boa.
Voltou-se para a filha e exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e
você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia
ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a
potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à
porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se
refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora
mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser."
Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é
tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Ainda
olhando pra mim, aquela bondosa mulher perguntou-me se gostava de ler,
respondi sem pensar: Gostar? Não senhora, eu amo ler, me sinto fascinada com este universo fictício que nos proporciona fazer parte de tantas histórias... Então,
ela perguntou a data do meu aniversário, após responder ela retomou sua fala,
minha filha gostaria de se desculpar por esta brincadeira de mal gosto, lhe
presenteando anualmente com um livro que será retirado da livraria de seu pai,
um de sua escolha, você gosta da ideia? A menina surpresa respondeu com a
cabeça pois sua voz se perdeu em meio ao nervosismo.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o
livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando
como sempre. Saí andando bem devagar. Ao levantar por um instante meus
olhos, ali estava aquela mesma senhora, desta vez com o sorriso no rosto. Sei
que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito.
Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito
estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para
depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas,
fechei-o de novo, fui passear pela casa, minha mãe observava com satisfação e
comtemplava minha felicidade, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga,
fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes.
Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a
felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já
pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu
era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no
colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu
amante.
(LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. In: Felicidade Clandestina. Rio de
Janeiro: Ed. Rocco, 1998)
Autor(a): ane.nunes
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